Os dois são americanos. Os dois iniciaram suas carreiras nos monopostos no início da década passada. Os dois estrearam na Champ Car quando ela já estava capenga. Os dois sabiam que o automobilismo de monopostos americano estava à beira da morte naqueles dias. Um decidiu pular o barco e seguir um caminho mais seguro. O outro, não. Por incrível que pareça, o desertor foi o que se deu mal.
Na noite do último sábado, a comunidade da Nascar Sprint Cup caiu da cadeira quando a organização da categoria anunciou que o piloto A. J. Allmendinger, da Penske, havia sido suspenso da Coke Zero 400, prova que seria realizada em Daytona em menos de duas horas. Motivo da suspensão: resultado positivo num teste de antidoping, um dos maiores pesadelos de um esportista. A substância não foi oficialmente revelada, embora o empresário tenha comentado que se tratava de um estimulante. Não espere que algum pronunciamento todo pomposo seja feito. A Nascar não fornece maiores detalhes sobre os exames antidoping realizados com seus pilotos desde 2009.
No momento em que recebeu a notícia, Allmendinger estava se preparando para a corrida de Daytona, 18ª da temporada da Sprint Cup. Imediatamente após o anúncio, Roger Penske teve de ligar para Sam Hornish Jr., seu piloto na Nationwide Series, para substituir A. J. já naquele sábado à noite. Na segunda-feira, a Penske anunciou que Hornish Jr. seguirá correndo pela equipe na próxima etapa, a ser realizada em New Hampshire neste fim de semana.
A cerca de 1.600 quilômetros dali, outro piloto americano teve num fim de semana diametralmente diferente. Ryan Hunter-Reay se aproveitou das idas e vindas de uma corrida amalucada nas ruas de Toronto e venceu pela terceira vez consecutiva nesta temporada da Indy. Pilotando o ótimo carro amarelado da Andretti, Hunter-Reay somou 335 pontos e assumiu a liderança da temporada. Faltando apenas cinco provas para o final, o nativo de Dallas desponta como o grande nome do ano até aqui.
Se RHR for o campeão da temporada, muita gente achará o máximo. Ninguém duvida da capacidade do piloto americano que completará 32 anos em dezembro. O mais legal da história é o fato dele estar vivendo seu grande momento no automobilismo americano. E lá se vão quase dez anos.
Em 2003, Ryan Hunter-Reay foi um daqueles muitos estreantes que apostaram no renascimento da Champ Car, que estava passando por uma fase doentia. Sexto colocado na F-Atlantic em 2002, ele não era exatamente o debutante mais badalado de todos os tempos. Sua equipe era uma tal de American Spirit Johansson, uma estrutura de mentirinha criada pelo ex-piloto Stefan Johansson unicamente para abocanhar os 800 mil dólares de subsídio que a Champ Car estava dando para as equipes novatas.
Hunter-Reay teria o inglório trabalho de pilotar um dos poucos Reynard do grid. Vale lembrar que a Reynard havia fechado as portas em 2002 e os poucos carros que restavam no grid eram preparados meio que na base do favor por Derrick Walker. A primeira fase do campeonato não foi das melhores, mas os resultados melhoraram na segunda metade do campeonato e Ryan até conseguiu uma inesperada vitória em Surfers Paradise, prova marcada por uma assustadora tempestade de granizo e uma série de acidentes que limou boa parte dos pilotos de ponta. Hunter-Reay, sensato como sempre, fugiu das confusões e venceu.
No ano seguinte, Hunter-Reay arranjou uma equipe ligeiramente mais séria do que a Johansson. Conseguiu uma vaga na razoável Herdez e mandou muito bem, liderando todas as 250 voltas da corrida de Milwaukee e vencendo sua primeira corrida em oval na ChampCar. Foi seu único grande resultado em 2004, mas Ryan ainda marcou bons pontos em outras etapas e terminou a temporada na nona posição.
Embora Hunter-Reay fosse considerado um bom piloto, ninguém o via como a salvação do automobilismo americano. Havia outros nomes mais interessantes. No mesmo ano de 2004, um moleque magrelo e branquelo fez sua estreia na Champ Car com a RuSport após ter sido o campeão da F-Atlantic em 2003. Anthony James Allmendinger debutou na temporada fazendo barulho: fez dois pódios e terminou o ano em sexto lugar, fazendo seu companheiro Michel Jourdain Jr. comer poeira.
Allmendinger manteve-se na RuSport em 2005 e terminou a temporada na quinta posição, sendo considerado pelos especialistas como o cara que poderia ser o redentor da pátria americana na Champ Car em um futuro próximo. No ano seguinte, surgiu talvez a melhor chance de sua carreira. A partir de uma rasteira.
Allmendinger fez as quatro primeiras corridas de 2006 pela RuSport, mas a equipe enjoou dele e decidiu botar o astro mineiro Cristiano da Matta em seu lugar. Não demorou mais do que dois dias para que A. J. arranjasse outro lugar. E que lugar. A poderosa Forsythe havia se cansado do limitado Mario Domínguez e de seus pesos mexicanos e decidiu contratar aquele que era o mais novo e badalado desempregado da ChampCar. A parceria entre A. J. Allmendinger e Forsythe prometia abalar a categoria, que andava precisando mesmo de uma desfibrilada.
E o cara chegou chegando. Venceu as três primeiras corridas que disputou pela equipe e se aproximou perigosamente do líder Sébastien Bourdais. Nas seis provas seguintes, ganhou duas e terminou outras duas entre os sete primeiros. Não ganharia o título porque Bourdais era o mestre da categoria naqueles dias, mas ao menos tinha tudo para terminar como vice-campeão e poderia iniciar 2007 como o novo bicho-papão da Champ Car. Mas o que a ambição desmedida não faz com um ser humano?
Dois dias após a etapa de Surfers Paradise, A. J. Allmendinger surpreendeu a todos ao anunciar que estaria migrando para a Nascar ainda no final de 2006. A notícia pegou a Forsythe de surpresa, pois a equipe acreditava que o piloto permaneceria com ela na temporada seguinte. O patrão Gerry Forsythe não quis nem saber e demitiu Allmendinger no ato, impedindo-o de participar da última etapa, que seria realizada em Hermanos Rodríguez.
Os fãs alucinados da categoria também ficaram inconformados. Como este filho da mãe abandona uma excelente vaga na Forsythe para aceitar ser um coadjuvante na Nascar? Responder que um moloide que andasse em 35º poderia ganhar muito mais dinheiro do que um piloto de ponta da Champ Car não era errado, mas também não era uma justificativa que agradava. Allmendinger, aquele que salvaria os monopostos americanos da obscuridade definitiva, se tornou o inimigo público número 1 daqueles que ainda achavam que a CC voltaria a ser a categoria esplendorosa de outrora.
A macumba de Gerry Forsythe e dos fãs da Champ Car parece ter funcionado. De 2007 pra cá, a carreira de Allmendinger não decolou. É verdade que ele fez fortuna e garantiu o leite das crianças e um sono tranquilo, mas o currículo não ficou muito mais bonito desde então. Em quase 170 participações, ele fez duas poles, ganhou uma corrida que não valia pontos em 2008, acumulou acidentes e não-qualificações, tomou um processo, foi preso por dirigir bêbado e passou os últimos anos pulando de galho em galho. A cereja do bolo foi o antidoping. O queridinho da América em 2006 virou apenas mais um transeunte dispensável dos stocks americanos. Meus parabéns, A. J.!
Durante a meteórica ascensão de Allmendinger, Ryan Hunter-Reay amargurou momentos de brilhantismo nulo. Uma temporada medíocre pela Rocketsports em 2005 praticamente o empurrou à vala do ostracismo. Após algumas corridas na Grand-Am e na A1GP, ele só conseguiu retornar ao automobilismo de ponta no segundo semestre de 2007, quando Bobby Rahal o convidou para substituir o fraco Jeff Simmons em sua equipe na IRL. Hunter fez seis corridas e mesmo assim se sagrou o Estreante do Ano. Sua única concorrente nesta parada era a boa Milka Duno, vale dizer.
Ryan correu pela Rahal-Letterman em 2008 e por duas equipes no ano seguinte, a Vision (foto abaixo) e a A. J. Foyt. Notabilizou-se por obter alguns resultados de grande expressão, como a vitória em Watkins Glen em 2008, e por estar sempre na corda-bamba, prestes a rodar devido à persistente falta de dinheiro.
No início de 2010, Hunter-Reay parecia estar finalmente destinado ao esquecimento eterno. Quem o resgatou da aposentadoria prematura foi Michael Andretti, que decidiu lhe dar uma chance de disputar as primeiras corridas da temporada da Indy. Era algo movido apenas à camaradagem, já que a Andretti Autosport não tinha dinheiro o suficiente para bancar um quarto carro durante um ano inteiro. Pois Ryan foi à luta. Andou forte logo de cara, ganhou uma corrida em Long Beach e motivou a equipe a tentá-lo manter pelo máximo de etapas possível. No meio do ano, a grife Izod, que havia injetado um pouco de dinheiro neste carro nas primeiras etapas, decidiu financiar o resto da temporada e Hunter-Reay finalmente obteve o almejado sossego.
Em 2011, a Andretti conseguiu o patrocínio da DHL e Ryan nunca mais teve de se preocupar em correr atrás de emprego, patrocínio e catervas. Hoje em dia, ele está aí, com a bola toda e propulsionando um certo reavivamento do interesse do americano médio pela Indy. Se ele for o campeão, podem ter certeza que muito ianque voltará a acompanhar as corridas de monopostos. O último título de um piloto do país foi em 2006 com Sam Hornish Jr. Neste momento, o que a Indy mais precisa é de um ídolo local. Quem diria que esse papel poderia caber ao moleque franzino que se arrastava num Reynard roxo e azul do Stefan Johansson?
Sou honesto. Não acho que o expurgo A. J. Allmendinger tenha menos talento que o festejado Ryan Hunter-Reay. Penso, aliás, que Allmendinger era o cara ideal para representar os Estados Unidos nestes últimos anos na Indy. Infelizmente, ele se deixou levar pela ganância imediatista e preferiu trocar tudo por um empreguinho meia-boca e bem remunerado na Nascar. Hoje, é um piloto que não tem muito mais relevância do que um Regan Smith ou um Martin Truex Jr. da vida. E ainda se complica com atitudes duvidosas fora da pista.
Ryan Hunter-Reay pode não ser o piloto mais genial de todos os tempos. Mas é ele que está ali, na posição de destaque, e graças ao trabalho duro, à humildade e à perseverança. Ao invés de buscar os dólares relativamente fáceis da Nascar, preferiu seguir no árduo sonho de ser um piloto de ponta da Indy. Ganha presente de Natal quem merece.
Fonte: Uol
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